Será o fim dos combustíveis fósseis? Será o fim dos carros com motor a combustão?

Sim e não.

Nos finais do século XIX, as grandes urbes mundiais debatiam-se com um problema semelhante ao que hoje as grandes cidades de todo o Mundo se debatem: engarrafamentos, problemas de mobilidade e graves prejuízos para a saúde pública.


Henrique Sánchez
Presidente Honorário da UVE – Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos
Artigo Mensal de Opinião na Revista Blueauto


Em Londres, circulavam mais de 50.000 cavalos por dia que transportavam bens e pessoas. Em Nova Iorque esse número duplicava, e os cerca de 100.000 cavalos que diariamente transportavam pessoas, alimentos, correio, e distribuição domiciliária, produziam 10 kg de excrementos por dia cada um deles, o que perfazia 1.000 toneladas de esterco por dia depositadas nas ruas de Nova Iorque, isto sem contar com a urina, as moscas e as centenas de cavalos mortos cujas carcaças demoravam a ser retiradas.

Trânsito no final do século XIX
Venda de gelo ao domicílio, EUA
Engarrafamentos
Mudanças
O famoso “Americano” em Lisboa

Este era o grande problema de mobilidade e de saúde pública que afetava as grandes cidades no final do século XIX, no verão com maus cheiros, moscas e muita poeira fétida, no inverno com lamaçais de lama e de esterco que as chuvas estendiam a toda a cidade.

Perante o caos e a incapacidade de resolver tal problema com o recurso ao tradicional cavalo como meio de transporte de pessoas e bens, surge o motor elétrico e o carro elétrico, no entanto, a tecnologia das baterias da altura impedia autonomias aceitáveis e era custosa. Faremos um artigo exclusivamente dedicado à História dos veículos elétricos. Neste vamo-nos centrar na solução para o problema dos cavalos e da tração animal em geral.

Os primeiros veículos elétricos traziam inovação tecnológica e resolviam o problema de saúde pública que os animais tinham deixado, no entanto, pela sua pouca autonomia e dificuldade de o carregar, (pela ainda fraca eletrificação das cidades), não permitiram que vingassem.

Surge então um produto abundante, facilmente extraível, e barato – o petróleo. Simultaneamente surgem empresas que extraem, refinam, armazenam, transportam, distribuem e vendem os seus derivados, gasolina e gasóleo, que o tornariam no combustível ideal para os novos automóveis com motores de explosão, (combustão interna), que nos ofereciam autonomia, fiabilidade e resolviam o gravíssimo problema de saúde pública já referido.

É a massificação do automóvel particular, com o Modelo T da Ford, e a mecanização de todos os transportes de passageiros e de mercadorias, públicos ou privados, assim como a construção de uma rede de ruas e de estradas que facilitariam as viagens.

Exemplar do Ford Model T

A rápida massificação do automóvel com motor de combustão interna demorou apenas alguns anos. As vantagens enormes que trouxeram – a moderna tecnologia, o bom desempenho e a autonomia generosa –, permitiram que fosse adotado por um número crescente de utilizadores. Ocorreu a explosão do automóvel ligeiro de passageiros e também de mercadorias, e em pouco tempo o panorama das ruas das grandes cidades mudou radicalmente.

O fenómeno disruptivo transformou as cidades em poucos anos, e isto há mais de um século.

A minha pergunta é: os cavalos desapareceram?
Não, claro que não! Mas já ninguém usa o cavalo e a carroça para as suas atividades quotidianas, quer em trabalho, quer em viagens. O cavalo é hoje utilizado em eventos desportivos, corridas de cavalos, concursos equestres, para passeios pela natureza, para um conjunto de atividades turísticas e lúdicas, mas não como meio de transporte quotidiano de pessoas e bens.

Fotos de uma apresentação do Prof. Tony Sebas

Pois bem, ao veículo com motor de combustão interna (VCI) irá acontecer o mesmo. Serão utilizados em corridas de automóveis, em exposições, em concentrações, em passeios mais ou menos turísticos, em competições de automóveis antigos, mas, definitivamente deixarão de ser usados como meio de transporte particular ou público, de passageiros ou de mercadorias, numa atividade quotidiana, começando pelos meios urbanos. As grandes cidades onde hoje já existem conjuntos de medidas restritivas irão multiplicar rapidamente essas medidas, afastando os VCI dos centros das cidades.

Esta tecnologia que durante cem anos se impôs, trouxe um conjunto de problemas semelhantes aos dos gerados pelos cavalos e pelos veículos de tração animal, agora multiplicados pelas gigantescas urbes que foram nascendo e onde se concentraram milhões de fontes de poluição ambiental e sonora: os veículos com motor de combustão interna.

Não sendo o fim dos veículos com motor de combustão interna, é sem dúvida, o início do seu fim, como meio de transporte particular ou coletivo, público ou privado.


Artigo publicado na Revista Blueauto nº26 – Novembro de 2019