A luz nunca se apagou aqui em casa

Artigo da UVE – Associação de utilizadores de Veículos Elétricos, publicado na edição nº 91 da revista Blueauto de maio de 2025, com três histórias de quem vive com autonomia energética e não sentiu o impacto do apagão de 28 de abril.


Na manhã de 28 de abril, as luzes apagaram-se em todo o país. Os elevadores pararam e todos os eletrodomésticos desligaram-se subitamente. Durante mais de 10 horas o contador elétrico parou em silêncio. Mas enquanto a maioria tentava adaptar-se à súbita falta de energia, houve quem simplesmente seguisse com o dia como se nada tivesse acontecido.

Este artigo conta as histórias de três pessoas que vivem com sistemas autónomos de energia — soluções que combinam painéis solares e baterias — e que, nesse dia, confirmaram que a sua escolha por uma vida mais sustentável e independente não era apenas uma questão de princípios, mas também uma aposta segura na resiliência.

Cada um com o seu percurso e motivações distintas, estes utilizadores mostram-nos como é possível viver com maior controlo sobre os recursos, sem sacrificar o conforto — mesmo quando tudo à volta deixa de funcionar.


Telmo Azevedo, Sintra, distrito de Lisboa
Equipamentos instalados: 22 painéis (7 kW de produção) e 15 kWh úteis de armazenamento estático (com baterias de tecnologia LFP)

Desde 2015, quando instalámos os primeiros 2 painéis fotovoltaicos de 250 W no telhado de casa, que o objetivo sempre foi maximizar a independência energética da família, onde se inclui todo o consumo diário da casa, aquecimento da água dos banhos (AQS), confeção de refeições e viagens com os veículos elétricos (1 mota e 2 carros).

Hoje, esse objetivo é garantido depois desse sistema de autoconsumo ter crescido durante 10 anos para passar a híbrido, e suportar assim desligar-se da rede elétrica (modo offgrid) quando necessário. É composto agora por 22 painéis (7 kW de produção) e 15 kWh úteis de armazenamento estático (com baterias de tecnologia LFP). Permitiu-nos passar o dia do “apagão” a 28 de abril, de forma normal, a trabalhar, cozinhar, carregar os veículos e viajar. Todas estas rotinas diárias sem constrangimento algum, e alimentados somente pelo sol. Foi a única casa da rua com energia durante muitas horas.

Além da resiliência, este caminho permite-nos algo mais importante, como reduzir tanto a nossa pegada carbónica, como os custos a médio-longo prazo. Atualmente poupamos cerca de 1.200 € por ano, rentabilizando assim todo o investimento realizado (ROI a 6 anos).

Todos podemos e devemos tirar o máximo partido desta “central de energia”, gratuita e inesgotável, que é o sol!


Bruno Silva, Oliveira de Azeméis, Distrito de Aveiro
Equipamentos instalados: 6 painéis solares de 455 wp cada um, junto com um inversor híbrido de 3,6 kW de potência e 3 baterias com 3,5 kWh cada uma; Capacidade de armazenamento de energia de 10,5 kWh.

Somos proprietários de dois automóveis elétricos e uma Scooter elétrica.
No dia em que ocorreu o apagão geral pela península Ibérica, a nossa vida decorreu dentro da normalidade. Bem, mais ou menos. Efetivamente a energia em nossa casa foi abaixo, mas assim que chegamos a casa comutamos manualmente para o modo “backup” e continuamos a nossa vida normalmente.

Por que motivo temos comutação manual e não automática? Como temos veículo elétrico e o programamos para, por vezes, carregar durante a noite – caso a energia fosse restabelecida automaticamente e não manualmente – o carro continuaria a carregar as suas baterias usando a energia armazenada nas baterias estacionárias até terminarem a sua capacidade, e aí sim, podíamos efetivamente ficar sem reservas de energia num caso de um apagão geral, como o que teve lugar no passado dia 28 de abril. Por isso, preferimos a opção de comutação manual para poder desligar o carregador do carro e controlar da melhor forma a energia de reserva na nossa habitação.

Mesmo com a possibilidade de o apagão se prolongar por 72h, até tínhamos energia de produção suficiente para carregar a bateria de um dos carros, através da nossa Wallbox com gestão dinâmica de potência, o que permitiu aproveitar o excedente de energia para a transferir para a bateria de um dos nossos carros. Mesmo quando a produção solar deixou de ser suficiente para a potência mínima requerida para o carro (cerca de 6 amp), a produção fotovoltaica, ainda existente, foi suficiente para ir preparando o jantar – pois já tínhamos as baterias estacionárias a 100%.

Ainda socorremos um casal amigo, que conhece o nosso sistema de autossustentabilidade energética, que se dirigiu à nossa casa para preparar a sopa para o seu bebé – tudo isto com a energia remanescente da produção fotovoltaica ainda existente e o apoio das baterias estacionárias. Confecionamos normalmente as nossas refeições com o fogão de indução, preparamos chá, tivemos a iluminação normal de uma habitação, bem como o rádio (já que a única coisa que falhou cá por casa foram os serviços externos de TV e Internet).

No final do jantar ainda tivemos oportunidade de ouvir os vizinhos na varanda do prédio a queixarem-se da situação e a rezar por um café… foi nesse momento que nos oferecemos para tirar cafés. Testemunhámos uma alegria contagiante na grande maioria dos que perceberam que tínhamos energia (muitos sabem do nosso sistema, e também têm painéis, mas sem baterias).

Servimos cerca de 20 cafés e sem qualquer reserva os oferecemos. O que até permitiu um agradável convívio entre os residentes que mal se encontram com a azáfama diária. Por incrível que pareça, após todos terem ficados satisfeitos por uma comodidade que tomamos por garantida, tomar um simples café, cerca de 20 minutos após todos se servirem e conviverem um pouco a energia regressou na nossa zona, pelas 21h.

Por opção minha decidi manter o sistema backup ativo para evitar possíveis picos e ainda ajudar a que a rede normalizasse o seu funcionamento, voltando a comutar novamente para o modo on-gride na manhã seguinte antes de sairmos para o trabalho.

Em resumo, com o nosso sistema conseguimos quase nem sentir o apagão geral que se sentiu na Península Ibérica. Com algumas reservas, pois desconhecíamos o tempo que o mesmo poderia demorar, fizemos a nossa vida dentro da normalidade e ainda ajudámos vizinhos e amigos a sentir algum conforto perante esta situação anómala.

Esquema de fluidez da energia na habitação de Bruno Silva e imagem do telhado do prédio onde residem (das 16 famílias, somente 3 possuem painéis fotovoltaicos, contudo o sistema com recurso a baterias é o único exemplo no prédio)

Inversor híbrido com sistema de backup e 3 baterias com 3,5 kWh de capacidade cada uma.


Daniel Galvoeira, Évora
Equipamento utilizado: KIA eNIRO com tecnologia Vehicle-to-Load (V2L)

Num dia aparentemente comum, enquanto o mundo lá fora seguia o seu ritmo habitual, uma inesperada reviravolta trouxe um desafio significativo. Enquanto eu e a minha mulher estávamos a trabalhar – um no portátil, o outro num computador de secretária – todas as luzes se apagaram e os aparelhos eletrónicos ficaram em silêncio. Inicialmente achámos que seria momentâneo, contudo, rapidamente, verificamos que podia ser um caso mais demorado.

A bateria do portátil encontrava-se com 30% de bateria pelo que o seu uso se previa limitado. O computador de secretária está ligado a uma UPS. Enquanto a UPS teve energia – durante aproximadamente uma hora – foi possível ter internet via telemóvel a funcionar e acompanharmos as notícias.

Com o aproximar da hora de almoço e com a necessidade de recarregar a UPS e a bateria do computador portátil, tive de pensar como poderia ter acesso a energia para recarregar estes equipamentos, para conseguirmos ter telemóveis e continuar a trabalhar.

Tenho painéis solares numa microprodução, contudo, com a falha da rede, não é possível a sua injeção em casa pois não tenho um sistema de baterias. Pelas 13h, ao passar no quintal junto do carro, lembrei-me que o nosso automóvel, o KIA eNIRO, que temos há quatro meses, permite o recurso à tecnologia Vehicle-to-Load (V2L). Como foi a primeira vez que tive de utilizar esta tecnologia, tive de ler as instruções e liguei-o conforme descrito, com uso do adaptador que temos no carro. Tinha a bateria a 100% de capacidade (68 kWh), visto que estava previsto viajar nesse dia.

Liguei uma extensão do carro até à sala onde iniciei a carga da UPS e dos telemóveis. Convidei os meus pais a irem lá a casa e com eles trouxeram mais extensões, para conseguirmos ligar mais equipamentos. Com as extensões foi possível dar energia ao frigorífico e ao router. Conseguimos preparar as refeições, com recurso ao gás natural (o fogão é a gás e não elétrico), contudo, se a placa fosse elétrica, a mesma conseguiria funcionar com o recurso ao V2L. Tivemos televisão e internet via fibra ótica e conseguimos tirar café, ou seja, após ligarmos os vários equipamentos, o resto do dia já foi normal. Também nos foi possível tomar duches quentes, visto que temos painéis solares térmicos. Já ao fim do dia ligámos um candeeiro do quarto e jantamos à luz de um candeeiro, o que foi uma experiência diferente! Quando eram quase 22h, regressou a energia. Foi tempo de desligar todas as extensões, ligar à rede convencional e arrumar todas as extensões e o adaptador V2L.

Graças a esta inovação tecnológica do V2L, foi possível continuar a trabalhar sem interrupções, almoçar, jantar, ver as notícias na televisão e ter internet, tornando um dia diferente num dia quase normal. Este episódio reforçou a minha confiança na tecnologia e na importância de estar preparado para imprevistos.

Balanço final de 11h de uso da bateria do veículo: passou de 100% para 96%; 3,25 kWh de energia consumida.

Consulte a edição digital da Revista Blueauto, nº 91

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