Novo Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica – melhorias e desafios

Análise da UVE – Associação de Utilizadores de Veículos Elétricos, ao novo Decreto-Lei n.º 93/2025, de 14 de agosto, que estabelece o novo Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica (RJME), publicado na edição n.º 95 da Revista Blueauto, de setembro de 2025.


O novo Regime Jurídico da Mobilidade Elétrica (RJME) definido no Decreto-Lei nº 93/2025, foi publicado a 14 de agosto em Diário da República e encontra-se já em vigor, com um regime transitório a decorrer até 31 de dezembro de 2026, para as situações ali identificadas.

Na visão a longo prazo da Mobilidade Elétrica, a questão central não está no que a lei prevê – são reconhecidos avanços significativos em muitos aspetos fundamentais. A preocupação encontra-se mais no que esta nova lei ainda não define.

Na realidade, é agora muito mais simples explicar de forma clara e resumida a visão da UVE, que defende, genericamente, tudo o que este novo RJME inclui, mas consideramos fundamental garantir adicionalmente, uma interoperabilidade obrigatória entre os operadores e a possibilidade da segregação de consumos num mesmo ponto de entrega. Estes aspetos são fundamentais para assegurar uma mobilidade elétrica com mais opções para o utilizador, e não a sua redução.

Partimos para o processo de revisão da lei com a expectativa de conseguir adicionar, tínhamos um pacote legislativo “A” queríamos adicionar “B”. O resultado final foi perder o “A”, ficando apenas o “B”, naturalmente não somos desfavoráveis ao “B”, era algo defendido pela UVE publicamente desde 2020, mas perdemos o “A”.

Temos agora um novo ponto de partida, sendo que este novo Decreto-Lei não resolve, por si só, os problemas da Mobilidade Elétrica em Portugal: alguns foram solucionados, outros permanecem inalterados e outros surgiram. Temos agora diferentes desafios para enfrentar.


Benefícios chave do novo RJME para o Utilizador

Fundamental para os novos Utilizadores, que deixam de precisar de um prévio contrato com um comercializador – podem simplesmente chegar a um Posto de Carregamento de Veículos Elétricos (PCVE) e ativar a sua sessão de carregamento de forma semelhante a tantos outros serviços a que recorrem diariamente, e pagar no momento. Uma obrigação do regulamento europeu AFIR.

Transcrição definitiva para o novo regime da obrigatoriedade de disponibilização do pagamento por cartão bancário nos postos ≥50kW ou Qr Code para os carregadores de potência inferior, sem exigir apps ou cartões específicos, conforme determina o regulamento AFIR. O possível relacionamento direto do Utilizador com o dono do posto, agora também ao nível do fluxo financeiro, facilita a comunicação e consequentemente a resolução de possíveis problemas.

Imposição clara das informações que obrigatoriamente devem estar ao dispor do Utilizador no PCVE, que passam a incluir novos detalhes como por exemplo a potência máxima do carregador, algo que a UVE reclamava desde há muito tempo.

Enquanto a versão inicial do documento apenas mencionava o preço por kWh, a versão final admite também o preço por minuto e por sessão de carregamento, apontando para as definições do regulamento AFIR. Se esta modificação é positiva, no sentido de permitir o desenho do tarifário que a UVE sempre defendeu – Preço por kWh com tarifa adicional por minuto após determinado período de tempo, variável de acordo com a potência do posto [https://www.uve.pt/page/simplificar/] – também acaba por ser demasiado permissiva, possibilitando a manutenção de tarifários complexos que não vão facilitar a perceção do preço final para o Utilizador.

Fruto da eliminação da figura do comercializador (CEME), automaticamente o Utilizador passa a ter a sua disposição no posto, algo que sempre foi uma solicitação da UVE – uma tarifa global total. Com milhares de novos Utilizadores a chegarem à mobilidade elétrica todos os meses, a disponibilização de uma tarifa simplificada, sem necessidade de somar parcelas de diferentes entidades, para a obtenção do preço total, é finalmente imposta e motivo de celebração. Serão necessários trabalhos complementares no Regulamento da Mobilidade Elétrica, nomeadamente com as questões da possível parcela de custo por tempo e IVA, obrigando a uma versão simples e clara do custo final para o Utilizador.

Indiscutivelmente, uma das grandes vantagens do novo RJME é por fim a um “braço-de-ferro” que se arrastou durante demasiado tempo e que reteve o investimento e consequente desenvolvimento, em Portugal, da rede de carregamento do maior operador mundial (Tesla). A chegada ao mercado de novos operadores internacionais, que se sentiam de alguma forma limitados pelas diferenças do nosso modelo são ultrapassadas. 

A introdução de um regime sancionatório, através da definição de coimas aplicáveis ao incumprimento dos deveres por parte dos operadores, muitos deles definidos no AFIR, mas até agora sem regulamentação especifica, esperamos que venham finalmente impor o cumprimento desses mesmos deveres. Quando olhamos para o número de PCVE de potência ≥50kW instalados após entrada em vigor do regulamento AFIR, onde apenas 23% cumpre com a disponibilização da tarifa ad hoc [observatorio.uve.pt], é fácil perceber que se trata de um passo determinante para garantir um melhor serviço ao Utilizador.

Uma mudança relevante do novo RJME diz respeito à instalação de pontos de carregamento em edifícios em regime de propriedade horizontal. A nova redação vem reforçar de forma clara os direitos dos condóminos ou proprietários que pretendem instalar um ponto de carregamento elétrico.

É eliminada a ambiguidade que constava na legislação anterior, que permitia ao condomínio recusar a instalação com base em argumentos que se revelaram subjetivos, como o eventual “prejuízo da linha arquitetónica do edifício”. Essa expressão foi substituída por um critério objetivo: um risco comprovado para a segurança de pessoas ou bens.

Além disso, ocorre uma inversão do ónus da prova. Cabe agora à administração do condomínio demonstrar, de forma inequívoca e com base em parecer técnico, que a instalação representa um perigo real. Assim, não basta a mera alegação de risco; é necessário apresentar parecer técnico fundamentado que sustente a recusa.

O cuidado demonstrado pela criação de uma plataforma própria de aquisição de dados especifica para a mobilidade elétrica, esperamos nós, aproveitando os recursos atuais, capazes de gerar informação como a que a UVE consegue disponibilizar no seu Observatório da Mobilidade Elétrica [observatório.uve.pt], é uma excelente medida.

Beneficia o utilizador, não só no seu uso diário, como influencia a tomada de decisão correta por parte dos operadores e entidades responsáveis, provocando a adoção das melhores praticas. Hoje temos uma clara e completa visão sobre a rede de carregamento instalada, o novo RJME cria condições para assegurar e incluir todos os operadores nesta ferramenta que desempenha um papel fundamental para todos os agentes do mercado.


Os novos desafios

O foco da UVE será, a partir deste momento, resolver as novas dificuldades que o RJME cria para os Utilizadores. Não se trata de comparar com o passado ou discutir se são mais ou menos obstáculos. O que importa é construir a partir do que existe e atuar para corrigir os desafios que o novo quadro legal impõe.

Alguns aspetos exigem um acompanhamento urgente para garantir não só um novo impulso de desenvolvimento da mobilidade elétrica em Portugal, mas principalmente facilitar a transição que decorre até 31 de dezembro 2026. Eis um resumo de alguns pontos que necessitam de atenção imediata:

Um dos problemas que mais incomoda os Utilizadores é a prática de alguns operadores aplicarem cativações de valores muito superiores ao custo real do carregamento, sempre que se utiliza o pagamento direto por cartão. Exemplo: para um carregamento que poderá custar 15 €, o sistema bloqueia 40 € ou até mais, podendo deixar o utilizador sem acesso a esse montante durante vários dias. Isto representa uma penalização financeira injusta e desincentiva a utilização deste método de pagamento.

A UVE terá um papel sensibilizador junto dos operadores e seus representantes, o pagamento via cartão bancário só será verdadeiramente prático e universal quando este problema for ultrapassado.

O novo RJME determina que todos os postos com potência ≥50kW, passem a disponibilizar pagamento por cartão bancário, mas apenas a partir de 1 de janeiro de 2027. Até lá, os postos antigos que sejam desligados da Rede Pública de Carregamento (atualmente gerida pela Mobi.E) não têm obrigação imediata de instalar TPA. Isto coloca em risco o princípio de acesso universal, penalizando os Utilizadores.

Pior ainda, no caso dos postos de potência inferior a 50kW onde não existe em momento algum uma obrigação de retrofit. Torna-se assim, necessário e urgente intervir junto das entidades competentes para garantir que nenhum utilizador de veículo elétrico é prejudicado no acesso aos PCVE.

Atualmente é possível ao Utilizador instalar um PCVE em sua casa e fazer uso do cartão de carregamento de um comercializador (CEME) disponibilizado pela sua entidade empregadora, com o custo a ser direcionado diretamente para a mesma. Os milhares de carregadores instalados pelos Utilizadores nos seus espaços privados, suportados no seu custo pelas suas empresas empregadoras ou pelos próprios, não podem deixar de merecer um cuidado e atenção especial na procura de uma solução que garanta o máximo de compatibilidade na transição.

Neste momento não há nenhuma garantia do que possa vir a suceder com estes milhares de equipamentos após 31 de dezembro 2026. O novo RJME endereça o novo desafio, que se coloca, para a ERSE, instruindo esta de regulamentar uma solução de contador e medição secundária (submetering), exclusiva de mobilidade elétrica, num código de ponto de entrega já existente.

Acreditamos que com base nessa futura regulamentação o mercado possa vir a disponibilizar uma solução com níveis de utilidade que satisfaçam tanto os Utilizadores, como as suas entidades empregadoras. Não é uma situação de resolução fácil, por algum motivo o submetering leva tantos anos de estudo, mas nunca saiu do papel.

A todos os Utilizadores que possuem este tipo de solução instalada nos seus espaços privados, e a todas as empresas que confiaram nesta solução como “click” definitivo para avançarem com a transição energética das suas frotas, a UVE quer deixar uma mensagem de tranquilidade e esperança. A UVE empenhar-se-á em obter um compromisso da tutela para a comparticipação a 100% em todos os custos que venham, eventualmente, a decorrer da possível necessidade de adaptação dos sistemas existentes, tanto para as empresas como para os particulares.

A realidade que nos foi transmitida por operadores locais e por associações congéneres (a UVE é uma das associações fundadoras da GEVA – Global Electric Vehicle Alliance), não mostra uma forte adesão aos serviços de subscrição, por parte dos Utilizadores. O que tem levado a cada vez maiores diferenças entre os preços ad hoc e/ou plano geral de tarifário do operador vs tarifário mediante um plano de subscrição.

O novo RJME é ainda mais permissivo que o próprio AFIR, deixando em aberto a possibilidade de diferenciação de preços por diversos motivos. Diferenças abismais, casos em que o custo sem subscrição chega a ser duas ou três vezes superior, criam desigualdade e afastam novos Utilizadores da mobilidade elétrica. Além de vigiados pelas entidades competentes, deve ser claro e transparente no momento da ativação da sessão de carga, para qualquer Utilizador, quais as possibilidades que possui de acesso a estes planos de subscrição e consequentes custos diferenciados.

Tema já abordado também na listagem de benefícios para o Utilizador, O novo RJME acaba por ser demasiado permissivo, abrindo portas à manutenção de tarifários com forte base no custo por minuto de difícil perceção para o Utilizador.

É fundamental a criação de um mapa fiável e em constante atualização de toda a Rede Nacional de pontos de carregamento, não será mais possível confiar esta missão aos privados, uma vez que os seus mapas estarão dependentes de acordos comerciais realizados entre si, tanto no caso dos operadores como dos prestadores de serviços ou mesmo plataformas de itinerância eletrónica. É preciso garantir ao Utilizador um local 100% seguro onde estão representados todos os pontos de carregamento.

A atual Tarifa de Acesso às Redes (TAR) específica para a mobilidade elétrica não prejudica a instalação e operação de postos em zonas com menor taxa de ocupação, tornando-os financeiramente viáveis e diminuindo o risco de desigualdade territorial. Na prática, esta tarifa facilita a coesão nacional e incentiva a expansão da rede para áreas de menor densidade populacional e/ou uso tipicamente sazonal.

O presente decreto-lei cria sérios riscos à sua existência, e por isso a UVE tentará sensibilizar as entidades competentes, nomeadamente a ERSE, para a importância de manutenção deste mecanismo, ou alguma medida de igual efeito que continue a permitir, não só a instalação de novos postos, como a continuidade dos postos existentes em locais com taxas de utilização reduzida.

O Decreto-Lei deixa demasiados regulamentos e portarias para execução posterior. A saber, por 17 vezes, ao longo do documento surgem menções a definições em regulamentos ou portarias a elaborar / aprovar pela entidade competente. O novo regime da mobilidade elétrica traz uma profunda alteração ao setor em Portugal, e embora já esteja em vigor, prevê a necessidade de regulamentação complementar para que todas as suas disposições sejam plenamente aplicadas.

É estabelecido, no próprio documento, um prazo de 120 dias para a elaboração destes documentos, o sucesso e plena implementação deste novo regime dependem da regulamentação complementar que irá detalhar os procedimentos, as normas técnicas, as obrigações de dados e a transparência de preços. O prazo de transição para a totalidade das medidas agora implementadas é, como já referido, até 31 de dezembro de 2026.

Muitos dos pontos assinalados acima como desafios, devem ser regulamentados no futuro Regulamento da Mobilidade Elétrica (RME), a elaborar pela ERSE, conforme determina o Decreto-Lei, ou nas diversas portarias de regulamentação a elaborar pelos diversos membros do governo que são mencionadas no documento.

A UVE reafirma o seu compromisso de lutar por uma mobilidade elétrica simples, justa e transparente, onde os Utilizadores não sejam prejudicados por barreiras técnicas ou comerciais. O compromisso é, como sempre, o de defender os direitos dos Utilizadores de veículos elétricos e contribuir para uma rede de carregamento mais abrangente a todos.

Consulte a edição digital da Revista Blueauto, nº 95

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